Filosofia do Kung Fu: entenda como ela é aplicada no método das artes marciais chinesas!

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Falar em “filosofia do Kung Fu” pode soar um pouco vago. Para entender o que está por trás dos golpes e técnicas das artes marciais chinesas é preciso conhecer um pouco das três filosofias que mais influenciaram a China e suas artes marciais: o confucionismo, taoismo e budismo.

Entenda como cada uma delas influenciou o Kung Fu e como continuam a contribuir nos treinos no séc. XXI!

As contribuições do confucionismo

Confúcio é o pensador mais influente na filosofia chinesa. Desde o séc. VI a.C. ele é tido como uma referência ética em assuntos familiares ou políticos. Em sua vida ele sempre buscou usar seus conhecimentos para beneficiar o povo. Primeiro como um funcionário do estado, depois como um conselheiro político e por fim se tornou um professor.

A aposta na capacidade de aprender

O confucionismo se baseia na aposta de que o ser humano pode aprender e se aperfeiçoar. Essa crença filosófica é a principal fonte de inspiração para a didática do Kung Fu. O processo de aprender os básicos antes de fazer matérias complexas não é somente didático, mas também imita a criação de crianças, que precisam ser introduzidas no mundo e na cultura.

Na arte marcial os professores devem ter uma postura serena e paciente. Principalmente com aqueles alunos que apresentam dificuldades de aprendizado. Com o método do Kung Fu, as aulas podem se tornar momentos de superação para essas pessoas. As academias de artes marciais devem se tornar espaços inclusivos de aprendizado antes de qualquer coisa.

A importância dos hábitos

Para aprender é preciso ser perseverante. Não há desenvolvimento de habilidade sem uma repetição contínua que vise melhorar o desempenho. Assim, o espírito ritual (ou Li) é necessário para manter a prática. Isso é verdade, pois, de certa maneira, todas as aulas e treinos são pequenos rituais diários.

Portanto, a jornada de um praticante de Kung Fu se baseia em vários ritos. Eles começam com a preparação para fazer uma aula, por exemplo, ao preparar o uniforme e se alimentar adequadamente. Continuam no momento da aula onde o aluno tem que cumprimentar o espaço de treinamento e fazer a saudação no início e final de cada matéria. Os artistas marciais se moldam por meio desses pequenos atos diários.

Junzi: o ideal regulador do confucionismo

Encontramos também uma inspiração ética na filosofia confucionista: o ideal de se tornar um junzi. Esse conceito é muito importante na cultura marcial chinesa (uma tradução aproximada de junzi seria “pessoa elevada”). Para os praticantes de Kung Fu não basta ser um bom lutador, é preciso ser uma pessoa nobre, que nunca usaria suas habilidades para oprimir os mais fracos.

Portanto, o ideal ético confuciano é outra grande influência sobre os artistas marciais, que devem sempre exigir mais de si mesmos. Mesmo que um ideal regulador não possa ser atingido, pois não existe perfeição, ele é fundamental para nos inspirar a ser pessoas melhores. Isso é verdade tanto para a nossa vida marcial quanto social.

Ainda temos a importância que Confúcio dá à formação marcial na sua visão de sociedade. O junzi não teria somente que estudar, mas ele precisaria harmonizar seu corpo e mente por meio dos exercícios físicos. Fazer tais atividades (especialmente as marciais) seria tão essencial para a moralidade quando conhecer as regras e costumes dos ambientes em que se vive.

Respeito e dever

Por fim, temos a piedade filial, que é um conceito complexo da filosofia confucionista. Esse termo é usado para expressar a ligação de lealdade entre mestre/discípulo, pais/ filhos, soberano/ súditos. Além da fidelidade, há uma exigência de reciprocidade no cumprimento dos deveres de uma parte com a outra.

Grande parte da cultura chinesa se apoia nessa visão, que vai das relações familiares até as relações entre estado e população civil. Portanto, as artes marciais foram muito influenciadas por essa postura de respeito e reverência do discípulo para com o mestre e vice-versa.

Na prática do Kung Fu vemos esse respeito ser ensinado desde os primeiros momentos, da faixa branca até a preta. O respeito deve ser sempre de mão dupla: os mais novos admiram os mais velhos pela sua experiência, enquanto que os mais velhos cultivam um grande carinho pelos mais novos, que são como crianças. Essa compaixão é fundamentada no senso de humanidade, o ren.

As contribuições do taoismo

O taoismo é uma filosofia muito profunda e antiga, baseada na relação dos opostos complementares do Yin e Yang. Ela mistura um conhecimento místico da natureza com uma crítica ferrenha à lógica do discurso, essa que, muitas vezes, é distorcida para criar argumentos falsamente racionais. Seus autores fundamentais são Lao-tse e Chuang-tse.

 Lutar sem oferecer resistência

Do taoismo o Kung Fu se inspira na ideia de wu wei, que é a ação sem esforço. Toda arte marcial propõe derrotar o adversário com o mínimo de esforço. Isso é fundamental, já que, idealmente, um guerreiro quer vencer sem se ferir. Dessa forma, o conceito taoista de seguir o fluxo do Tao pode ser aplicado nos combates.

Uma história muito famosa é a da Dama de Yue. Esse texto, que possivelmente é um mito, é normalmente datado de 496 a.C. no período da Primavera e Outono. O Rei Gou Lian, líder de Yue, teria se impressionado com as habilidades de uma simples jovem.

Ao ser questionada sobre a origem de sua técnica ela responde:

“A teoria é bastante sutil, porém fácil de entender. Seu verdadeiro significado está oculto e é profundo. A teoria inclui tanto as portas grandes [duplas/ataque] quanto as pequenas [simples/defesa], e os aspectos yin [passivo/recuar] e yang. Abra a porta grande e feche a pequena [passe da defesa ao ataque], a passividade retrocede e aumenta a atividade.

Os preceitos seguintes são aplicáveis a todas as formas de combate corporal: fortaleça o espírito interior, mostre-se calmo; demonstre a aparência de uma mulher discreta e lute como um tigre feroz; gere energia por todo o corpo e movimente-se com o espírito; permaneça distante e impenetrável como o sol, e rápido e ágil como uma lebre que salta;

Agora seu adversário o está vendo [persegue sua imagem], e agora não [persegue sua sombra], e o fio da espada brilha intermitentemente de modo semelhante; respire com o movimento e não quebre as regras; de um lado para o outro, para a frente e para trás, ataque direto ou ao contrário, o adversário não os ouve [seus movimentos não são telegrafados]. Essa base teórica permitirá uma pessoa combater cem, e cem combaterem 10 mil”.

Nessa passagem encontramos os princípios do Yin e Yang sendo aplicados na luta. Esses opostos complementares aplicados no combate fazem uma clara alusão à filosofia taoista.

Entendendo o Tao seria possível que um combatente derrotasse vários adversários ao atacar e defender no momento exato, usando o mínimo de esforço. Os praticantes de Tai Chi Chuan, Bagua e Xinqyi Quan tem que estar atentos a esse conceito constantemente.

O silêncio da verdadeira maestria

Outro aspecto do método do Kung Fu que foi inspirado no taoismo é a ideia de maestria. O conceito de shen, que significa divino ou espírito, representa a habilidade internalizada de alguém que dominou determinada habilidade. O shen evoca a ideia de que o espírito age sem restrições, sem se afetar pelo intelecto.

Um artista marcial habilidoso (ou qualquer tipo de artista) agiria perfeitamente sem precisar pensar ou calcular suas ações. É comum que iniciantes, ao tentarem executar técnicas em alta velocidade, se percam em seus pensamentos. Isso gera erros de execução, pois a racionalidade não dá conta de agir espontaneamente.

Logo, o praticante de Kung Fu habilidoso é aquele que já interiorizou as técnicas de tal maneira que ele não precisa pensar nos movimentos, eles fluem naturalmente.

Chi kung: a arte de dominar o qi

O chi kung ou qi gong é a arte do cultivo do qi. Esse conceito é fundamental nas artes marciais e medicina tradicional chinesa. Ele é uma energia da natureza que flui pelo nosso corpo. Quando ele está em equilíbrio temos saúde, mas se há desequilíbrio aparecem doenças.

Técnicas visando melhorar o fluxo do qi para ganhar saúde surgem na dinastia Qin (221-207 a.C.). Elas se tornam muito populares, especialmente entre os nobres, pois tais técnicas poderiam, em teoria, trazer a imortalidade.

O chi kung não se limitou à manutenção da saúde. Já que também surgiram técnicas que propunham aumentar a força do corpo humano. Com elas uma pessoa poderia destruir tijolos com as mãos e resistir a ataques perfurantes na pele.

Contudo, recomendamos cautela ao abordar o chi kung, pois muitas pessoas usaram de histórias fantásticas e truques de ilusionismo para enganar pessoas leigas. É possível atingir novos níveis de consciência, saúde ou habilidade marcial com o controle do qi. Porém, as leis naturais da física e biologia nunca são desrespeitadas por tais técnicas, o que seria completamente oposto ao espírito da filosofia taoista, que é seguir o fluxo natural do Tao.

As contribuições do budismo

O budismo é uma religião indiana não teísta. Sua origem remonta ao século VI a.C. quando Siddhartha Gautama teria despertado e se tornado um Buda. A chegada do budismo à China causou um grande impacto na sociedade, portanto as artes marciais não ficaram de fora.

Encontramos no budismo diversas discussões filosóficas e metafísicas, que buscam entender e acabar com o sofrimento. Por isso, o budismo pode influenciar o Kung Fu tanto como uma religião quanto como um saber filosófico.

O lendário Templo Shaolin

O budismo não foi somente uma influência para o Kung Fu, mas afetou diversos aspectos da civilização chinesa. Os vários templos budistas espalhados na Ásia foram locais de cultura, política e religiosidade. O Templo Shaolin, que é o local mais famoso associado às artes marciais, foi construído por Batuo (monge indiano) e o rei Xiaowen (dinastia Wei do Norte) no ano de 495 d.C.

Esse mosteiro foi um símbolo de resistência quando o budismo foi banido por certos líderes chineses e ainda forneceu guerreiros para auxiliar alguns imperadores para ter favor político. Além disso, os monges Shaolin se tornaram uma referência para artistas marciais de todo o mundo.

O mito da criação do Kung Fu

Por mais que as histórias que associam a criação do Kung Fu à visita de Bodhidharma ao templo Shaolin sejam muito importantes no imaginário popular, a verdade é que elas se baseiam em lendas.

Não há provas concretas de que Bodhidharma tenha de fato criado o Kung Fu. E ainda há o fato de que o Kung Fu, em suas várias formas, é muito mais antigo que o templo. Portanto, não faz sentido afirmar que todas as artes marciais chinesas tenham origem no mosteiro, mesmo que muitos estilos tenham sido influenciados por ele.

A importância da meditação

A meditação é uma técnica essencial para os budistas. É por meio dela que se pode chegar ao nirvana e se libertar do sofrimento. Ao concentrar a mente, o praticante de meditação consegue controlar melhor seus impulsos de desejo e aversão.

Ter esse domínio da mente é muito útil para qualquer ser humano, mas em situações de dor extrema ou quando decisões tem que ser tomadas rapidamente, essa habilidade se sobressai. Em um combate é muito importante manter a mente concentrada, sem se abalar pelas emoções e dores intensas.

Por isso, exercícios meditativos e de resistência à dor (como ficar parado vários minutos em uma mesma posição) são utilizados em várias academias de Kung Fu. Não importa qual estilo se pratica, há muitos benefícios em usar tais técnicas. O fato é que a prática de meditar auxilia em muito o controle emocional e a concentração. Ambas são habilidades de grande importância para artistas marciais que buscam saúde ou vitória nos ringues.

Kung Fu e religião

Muitas escolas não somente usam as técnicas de meditação para fortalecer a mente de seus alunos, como também adotam a religião budista como um norte para as ações de toda a família marcial. Por isso, alguns mestres são ao mesmo tempo monges e professores.

Contudo, essa prática não é uma regra. Na maioria das escolas o ensino de Kung Fu é laico, não sendo exigido que o aluno siga uma determinada doutrina. Outros locais podem criar turmas avançadas, nelas somente os alunos iniciados poderiam participar.

A maneira que uma escola aborda o tema da religião vai depender do professor e sua visão da arte marcial. Pois, mesmo que o professor associe o Kung Fu com o budismo na sua vida diária, ele pode manter um ambiente inclusivo e acessível para teístas, agnósticos e ateus.

A Filosofia do Kung Fu

Em suma, o Kung Fu enquanto prática pode estar totalmente separado de uma corrente filosófica ou religião. No entanto, enquanto o Kung Fu é também um movimento cultural, ele carrega consigo rituais e técnicas que se fundamentam em princípios filosóficos.

Existem praticantes que treinam artes marciais chinesas por puro hábito, sem pensar na riqueza histórica daquilo que fazem. Isso é comum quando determinadas práticas se tornam parte de uma cultura, quando se tornam um simples costume. Com o passar de gerações é normal se esquecer da fonte do conhecimento.

Por isso, revisitar os antigos pensadores e entender a fundo a história da China é fundamental para entender o Kung Fu para além de socos e chutes.

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Beba direto da fonte!

Explore a fundo as várias influências teorícas que compõe a filosofia do Kung Fu!

Os Analectos - Confúcio

Os Analectos são um conjunto de diálogos entre Confúcio e seus discípulos. Nele você encontra os principais debates confucionistas.

Tao Te Ching - Lao-tse

O Tao Te Ching é mais um livro basilar da filosofia taoista. Nele, você encontra as reflexões de Laozi (ou Lao-tse).

O livro de Chuang-tse

The Book of Chuang Tzu, Elizabeth Breuilly (Autor), Chang Wai Ming (Autor), Martin Palmer (Tradutor). Nesse livro você encontra todos os capítulos do Zhuangzi, o "internos", "externos" e "mistos"!

Capa do livro A tradição do budismo de Peter Harvey

A Tradição do Budismo: História, Filosofia, Literatura, Ensinamentos e Práticas

Um livro contendo os frutos dos estudos de Peter Harvey, professor emérito de Estudos Budistas na Universidade de Sunderland (Inglaterra).

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