Kung Fu Shaolin – Um Guia completo para o Templo e seus monges

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Esse texto é um guia completo para compreender a história do Kung Fu Shaolin. Acompanhe a trajetória do Templo mais famoso das artes marciais!

A criação do Templo Shaolin

O Templo Shaolin foi fundado pelo monge indiano Batuo, que conquistou boa vontade na corte do imperador Xiao Wen (467-499), da dinastia Wei do Norte. O imperador também ofereceu ao monge uma posição na corte, porém ele a recusou.

No primeiro plano temo uma estátua de pedra de um leão chinês. No fundo um das estruturas do templo Shaolin
O Templo Shaolin é um complexo com várias estruturas.

Por fim, o monge acabou recebendo um terreno e fundos para a construção de um monastério. Por volta de 495 d.C. as primeiras estruturas foram  erguidas no Monte Shaoshi (próximo a Luoyang, Henan). Este é um dos montes mais altos da região (1.512m) e um dos mais sagrados da China.

O monastério é um complexo de construções que foram construídas, reformadas, destruídas e restauradas diversas vezes. Sua história é repleta de altos e baixos; ora tendo alta estima dos poderes, recebendo investimentos e terras, ora sendo queimado e perseguido pelas autoridades ou foras da lei.

O cotidiano no Templo Shaolin

Na China encontramos diversos mosteiros espalhados em montanhas e florestas. O mais famoso deles é o Templo Shaolin, porém há vários outros templos dignos de nota e em vários deles temos registros que abordam a vida desses monges. 

Um mosteiro é muito mais do que um complexo de estruturas no meio de uma floresta. Era muito comum que os templos tivessem uma vasta área de terras cultiváveis. Assim como o povo das aldeias e vilarejos da China Imperial, os monges tinham que garantir
sua subsistência.

Monge Shaolin em uma postura baixa de Kung Fu

A agricultura sempre foi algo essencial para a sobrevivência humana em sociedade. Então, a tarefa mais importante no templo era preparar e cultivar as terras. O terreno do Templo Shaolin era muito extenso. Por isso era comum que as pessoas de aldeias e vilarejos
próximos trabalhassem nessas terras também.

Além disso, artistas marciais e estudantes alugavam salas nos templos. Alguns deles se preparavam para os exames imperiais (militares ou civis), aproveitando o local tranquilo para tocar seus estudos. Dessa maneira, havia uma boa circulação de pessoas na área do mosteiro.

É bem provável que o intercâmbio de saberes (incluindo os saberes marciais) tenha acontecido nesses momentos. Desses encontros surgiu uma cultura própria do templo, originando práticas como o Kung Fu Shaolin.

A lenda da criação do Kung Fu Shaolin

A lenda mais famosa sobre o Templo Shaolin é sobre a criação do Kung Fu e sua relação com o budismo. A tradição conta que, no ano de 520 d. C., o monge budista Bodhidharma chega
ao templo e passa nove anos em silêncio e meditando em uma caverna próxima.

Monges Shaolin se apresentando em um palco
Monges Shaolin se apresentando na Semana da Diversidade Cultural, no QG da UNESCO, em Paris (Maio de 2009).

Quando saiu de lá, Bodhidharma ensinou aos monges uma série de exercícios e práticas que dariam origem ao Kung Fu Shaolin. Esse monge não só teria criado essa arte marcial chinesa, mas também difundido o budismo Chan na China (que no Japão se passa a se chamar Zen).

Antes de partir do templo, Bodhidharma deixou uma caixa com diversos textos e manuais para os seus discípulos. Entre alguns textos temos:

  • A Metamorfose dos Tendões (Yi ji jing);
  • Dezoito mãos de Luohan (Shi BA luo han);
  • A Limpeza da Medula Óssea (Xisui jing).

Todos eles falam sobre formas de tornar o corpo invulnerável e até prolongar a vida. Neles encontramos uma associação entre o taoismo, prática marcial e Chi Kung (ou qi gong,
que é uma série de técnicas para controlar a energia Chi/qi).

Porém a autoria deles é criticada. Essa lenda ficou muito famosa na dinastia Qing, quando Zhongheng publicou A Metamorfose dos Tendões e o atribuiu a Bodhidharma. Esse foi o
primeiro livro a associar mitologia budista com exercícios taoistas.

No séc. XX a lenda se populariza com o romance As Viagens de Laocan (Laocan Youji), escrito por Liu Tieyun/ Liu E. (1857- 1909) e publicado na Revista de Ficção Ilustrada entre os anos de 1904-1907. Décadas depois o mundo se veria encantado pela versão fantasiosa dos monges Shaolin retratadas nos filmes de cinema.

O que os registros históricos dizem sobre essa lenda

Faltam registros históricos que comprovem essa a narrativa dessa lenda. O fato é que, provavelmente, Bodhidharma existiu. A este monge é atribuída à criação do Kung Fu Shaolin, como falamos no tópico anterior, mas também a da criação de toda técnica marcial chinesa.

Porém os registros históricos que temos dele não contam a mesma história. Veja alguns exemplos:

  • Registro dos mostreiros Budistas em Louyang (Luoyang jia lan ji, 547), o escritor Yan Xuanzhi cita um monge de 150 anos de idade que teria vindo da Pérsia (atual Irã). – Com base nessa obra, o historiador, Broughton, citua Bodhdharma no mosteiro de Yongningsi, na cidade de Luoyang entre 515 e 526;
  • Biografia de Bodhidharma no prefácio, escrito por Tan-lin (506-574), de Tratado das Duas Entradas e das Quatro Práticas (Erru sixing lun), obra anônima falsamente atribuída a Bodhidharma. O tratado descreve métodos para alcançar a iluminação. Nele Tan-lin fala que o monge era o terceiro filho de um rei da dinastia Pallava, do sul da Índia;
  • Continuação das Biografias dos Monges Ilustres (Xu gaoseng zhuan), escrita pelo monge budista Daoxuan, em 645, fala da atividade de Bodhidharma na região do monte Song e na cidade de Luoyang.

Podemos perceber que nem o Templo Shaolin ou o Kung Fu são mencionados por esses textos.

O Kung Fu é mais antigo que o Templo Shaolin

Também há o fato de que as artes marciais chinesas já eram muito difundidas e praticadas séculos antes da criação do templo. Por isso, afirmar que o Kung Fu se criou lá não faz sentido.

Capa do Livro A Arte da Guerra de Sun Tzu
O livro A Arte da Guerra de Sun Tzu é um dos mais famosos tratados de estratégia do mundo antigo

A história registrada da civilização chinesa se inicia no mesmo período que temos a transição das armas de pedra para as armas de metal (o bronze), junto com as primeiras dinastias. Em cada época houve avanços nos métodos de treino das artes marciais:

  • Dinastia Xia (2100-1600 a.C.) – é a primeira dinastia histórica e define o momento de transição entre as culturas neolíticas e do metal. Surgem as armas de bronze e as primeiras escolas que ensinavam o tiro com arco e flecha;
  • Dinastia Shang (1600-1100 a.C.) – usavam o carro de combate como sua principal arma de guerra. Nele havia um condutor, um arqueiro e um soldado armado com lanças ou alabarda;
  • Dinastia Zhou do Oeste (1100-771 a.C.) – as escolas Zhou ensinavam o arco e flecha como a arte marcial mais importante. Surge uma maior necessidade de treinar as tropas, por isso houve um maior desenvolvimento nos método de preparação. Surgem as danças militares (wu wu) que eram rotinas de treinamento. A estratégia, planejamento e matemática ganharam ainda mais importância para a guerra;
  • Período da Primavera e Outono (770-476 a.C.) – Confúcio dá atenção especial à relação entre marcialidade e intelectualidade. Para ser um junzi (pessoa superior)
    seria preciso levar uma vida tanto acadêmica quanto marcial;
  • Período dos reinos combatentes (476-221 a.C) – surge A Arte da Guerra (Bing Fa – 512 a.C.), de Sun Tzu, que aborda o lado menos direto da batalha, a estratégia.

Nesse período há evidencias de que a prática marcial não era exclusiva das elites. Uma revolta de artesão e comerciantes em 841 a.C. prova que os civis eram habilidosos no manuseio de armas. Com esses registros, podemos concluir que as artes marciais chinesas são bem mais antigas do que o Kung Fu Shaolin.

Quem eram os monges Shaolin?

A ideia de um grupo de monges especializados no treino marcial é relativamente recente. Atualmente, no Templo Shaolin, encontramos monges que são acadêmicos, que se concentram em estudar as escrituras budistas, e os guerreiros, que passam a maior parte do dia treinando artes marciais.

O mais provável é que a maioria dos monges do passado não possuísse habilidades extremas de artes marciais, pelo menos, nada fora da média da população. Eles eram pessoas comuns, mas que não hesitariam em defender suas terras de ataques se necessário.

Alguns deles tinham habilidades de combate, mas não era comum que eles treinassem tácticas militares, como se fossem um exército. E mesmo que o fizessem, os imperadores chineses
dificilmente deixariam um exército de monges se formar nas montanhas de seu país. Mosteiros já foram queimados às cinzas por muito menos que isso. Não a toa que a fama do Templo Shaolin foi responsável por salvá-lo várias vezes da retaliação política.

A prática marcial era comum nos templos da China

A localização do Templo Shaolin era bastante isolada e uma rota de fuga para bandidos. Como o território do mosteiro era extenso, ele precisava de proteção constante. Assim, é de se esperar que os monges Shaolin e pessoas que moravam próximas ao templo estivessem prontos para lutar.

E isso não era só no Templo Shaolin. No Livro de Wei (Weishu), escrito por Wei Shu entre 551-554, é mencionado que, em 446, quando as tropas Wei invadiram alguns templos, lotes de armas foram encontradas. Esses templos ficavam na região de Changan (Xian).

O historiador Kang Gewu, afirma que os monges praticavam uma luta antiga chamada jiao di. Nela os participantes usavam capacetes com chifres para se enfrentar em lutas corpo a corpo.

A rotina de um monge Shaolin

É importante ressaltar que a rotina de um monge era bem difícil. Eles tinham que limpar todas as estruturas (a limpeza na religião budista tem um significado bem mais
abrangente do que a simples higiene), fazer suas orações e estudos das escrituras, meditar e trabalhar nas terras para cultivar alimento.

Tudo isso deixava pouco tempo para atividades livres, como aprender artes marciais. O mais provável é que, antes de se ordenarem monges, alguns deles já soubessem artes marciais. Era comum que a população tivesse contato com o Kung Fu, já que a vida naquela época era
bem violenta.

As técnicas de bastão do Kung Fu Shaolin

É no final da dinastia Yuan (1271-1368) que aparece pela primeira vez a associação dos monges Shaolin com o bastão. Para se ter ideia, os estilo de Kung Fu sem armas são vinculados ao Templo Shaolin somente no séc. XVII.

As lendas das técnicas Shaolin

Existe uma lenda que conta que no ano de 1351 os Turbantes Vermelhos, um grupo rebelde que enfrentava os Yuan, atacaram o monastério. Durante o saque, um monge que estava trabalhando nos fornos do Templo incorporou o espírito de Jinnaluo, o patrono do Templo e protetor de Buda. Armado com um bastão, sua imponência e poder afastaram os invasores.

Essa lenda se tornou uma explicação comum para a associação de um templo budista com as artes marciais. Além disso, o bastão seria também uma boa escolha de armas para os monges, pois a ausência de lâminas na sua constituição combina muito com o imaginário de guerreiros que não matam.  

Outro ponto importante de ressaltar é que o historiador Tang Hao afirma que os Turbantes Vermelhos devastaram parte do Templo, que ficou abandonado por anos. Esse foi mais um triste episódio onde a violência causada pela instabilidade política custou a vida de inocentes.

As opiniões dos especialistas

Ao longo dos séculos a fama do Templo foi aumentando. Tanto os fatos quanto os mitos acerca dos feitos dos monges ajudaram a criar um ar sobre eles que era simultaneamente de reverência e fascinação. Por isso, diversos especialistas da China Imperial deixaram registradas as suas opiniões sobre o mosteiro e as técnicas de bastão Shaolin.

A perspectiva militar

Os militares eram os artistas marciais que estavam mais envolvidos com a guerra. Para eles o combate mão a mão era um passo importante para o treino das tropas. No entanto, o foco real do soldado seria o treinamento com armas.

No Livro da Disciplina Eficaz (Ji Xiao Xin Shu, 1562), escrito pelo general Qi Jiguang (1528-1588), encontramos as técnicas com e sem armas da sua época que ele achava mais eficientes. Qi chega a citar o método de bastão Shaolin, o que mostra que elas eram consideras eficazes para um general renomado da dinastia Ming (1368-1644).

Há também nas enciclopédias militares da época várias menções às técnicas de bastão Shaolin, sendo elas dignas de serem aprendidas. Como exemplo temos o Tratado de Assuntos Militares (Wu bian), escrito por Tang Shunzhi (1507-1560), veterano militar e o Tratado de Preparações Militares (Wubei zhi), escrito por Mao Yuanyi (1549-1641), oficial do governo.

A perspectiva civil

A população civil também se preocupava com as artes marciais. Por isso, certos praticantes de Kung Fu mais instruídos deixavam suas opiniões em textos para a posterioridade. A Exposição sobre o Método Original de Bastão Shaolin (Shaolin gunfa chan zong de 1610) é o primeiro manual de um estilo de combate Shaolin.Ele foi escrito pelo artista marcial Cheng Zongyou.

Já o Registro das Armas (Shoubi lu 1678), do estudioso e praticante das artes marciais Wu Shu (1611-1695), aborda a técnica do monge Shaolin Hongzhuan (que foi o instrutor de Cheng Zongyou). Wu critica a técnica Shaolin por usar a lança como se fosse um bastão. Isso mostra que os monges não utilizavam somente o bastão, ao contrário do que as lendas possam sugerir.

As iniciativas militares do Templo Shaolin

A fama de que o treinamento do Kung Fu Shaolin poderia fazer de qualquer pessoa um guerreiro mortal tem base na realidade. Não no sentido de que os monges eram invencíveis, mas sim no fato de que eles participaram de campanhas militares.

O acadêmico Meir Shahar fez um estudo sobre as estelas (placas de pedra onde se faziam registros) encontradas no templo e escritas entre 621 e 728 d.C. Elas narram feitos e acontecimentos no mosteiro, especialmente sobre a ajuda que monges Shaolin deram à dinastia Tang:

  • Em um escrito de 728, Pei Cui (oficial sênior) conta que, entre 605-616, ladrões estavam atacando pessoas e templos na região. Os monges foram forçados a se defenderem. Várias propriedades do templo foram incendiadas;
  • Uma das propriedades do templo, o Vale dos Ciprestes (Baigu Shu), tinha um valor estratégico como rota de comunicação com Luoyang. Wang Shichong (falecido em 621), general dos Sui, marchou com suas tropas e construiu uma torre de observação no Vala dos Ciprestes.
  • Li Shimin (ou imperador Taizong) estava em Guangwu, leste de Luoyang. Alguns monges se questionaram de qual lado estaria a graça divina. Treze deles resolveram ajudar Li Shimin e capturaram Wang Renze (sobrinho de Shichong). O Imperador Taizong agradeceu dando várias propriedades ao templo;
  • Em um texto da Estrela de Shaolin, há uma carta de 26 de maio de 621 onde o imperador Taizong agradece os 13 monges que o ajudaram e fala para voltarem aos caminhos pacíficos da religião.

Esses feitos não devem ser exagerados. Oferecer ajuda aos governantes era uma boa forma de proteger o Templo Shaolin de intrigas políticas. A reputação do templo o salvou anos depois quando a corte adotou medidas contra o budismo.

Monges Shaolin em posturas de Kung Fu na frente de estelas
Estelas são pedras firmes posicionadas verticalmente. No passado era comum registras textos nales.

Sendo assim, a parceria era mais simbólica do que factual. Treze monges Shaolin não fariam muita diferença em uma batalha com mais de 50 mil soldados de cada lado.

As tropas formadas por monges contra os piratas

Na dinastia Ming (1368-1644) a costa leste da china era assediada por piratas japoneses. Apesar da prosperidade do governo, o exército chinês estava extremamente mal treinado e equipado.

Com esse cenário os generais dos Ming se empenharam para defender o território de qualquer forma que fosse possível. Eles criaram os xiang bing, tropas de apoio ao exército regular.

Entre essas tropas tínhamos as milícias monásticas que eram compostas por monges de vários templos, inclusive Shaolin. Alguns feitos importantes dessas tropas de monges:

  • 1548 – O monge Sanqi ocupou uma posição militar nas fronteiras das províncias de Shanxi e Shaanxi;
  • 1553 – Um grupo de monges Shaolin participa da defesa da província de Zheijiang;
  • 1556 – O representante militar Nanjing recrutou monges Shaolin para combater piratas em Jiangnan;
  • 1651 – Jornais de Zhejiang noticiam tropas monásticas contra piratas, mas não fala de qual templo;
  • 1665 – O comandante militar He Liangcheng discorre sobre as técnicas de bastão Shaolin dizendo que os monges do mosteiro de Funiu, em Henan, também praticavam artes de combate.

Budismo – A base filosófica e religiosa do Kung Fu Shaolin

O budismo é tanto uma religião quanto uma corrente filosófica. Como a base da prática budista é a meditação, qualquer um pode usufruir de seus ensinamentos, basta sentar-se e se concentrar.

Estua de Bonze de Sidarta Gautama
Representação de Siddhartha Gautama, que aos 35 anos se tornou um Buda.

Toda a ideia de visão religiosa e metafísica do mundo budista se baseia na história de um príncipe chamado Siddhartha Gautama, da Índia. Ele teria vivido no séc. VI a.C. Seu nascimento nobre o permitiu viver até os 29 anos sem conhecer a miséria e sofrimento.

Ao descobrir as condições em que os plebeus viviam, ele partiu para uma vida simples e isolada. Depois de anos de reflexão ele atingiu a iluminação e se tornou um Buda aos 35 anos. Buda pode ser entendido como um título ou estado de consciência daquele que despertou da ignorância e vê através das ilusões.

Essa história repercutiu em toda a Índia e gerou uma onda de monges viajantes, que buscavam levar as orientações de Buda para todos os cantos do mundo. Alguns desses monges chegaram na China e criaram templos para permitir o aprendizado das Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo.

Relação contraditória entre violência e religião

O budismo é uma religião que tem conceitos filosóficos muito complexos. Um deles é a sila, a conduta ética. Dentro dessa ideia de moralidade encontramos a “fala correta” (samyag vac), a “ação correta” (samyag karman) e o “viver corretamente” (samyag ajivana).

Capa do livro A tradição do budismo de Peter Harvey
A tradição do budismo de Peter Harvey é uma boa leitura introdutória.

A noção de agir corretamente trata justamente da violência contra outros seres. Nos ensinamentos de Buda, causar o sofrimento de outras formas de vidas (humanas ou não) é fonte de ainda mais sofrimento para nós mesmo.

Assim, temos mais um conceito budista: o karma. Essa ideia é a de causa
e efeito, que tudo que fazemos cria uma reação no universo. Dessa maneira, ao
ferir o outro, automaticamente, ferimos a nós mesmos.

É por isso que no budismo o estilo de vida é voltado para evitar gerar mais sofrimento. A dieta vegetariana é um preceito budista por conta disso. A guerra e combates também são
inaceitáveis para aqueles que querem atingir a iluminação.

Todos esses conceitos religiosos e filosóficos tornaram a situação dos templos paradoxal. Por um lado, o budismo não permite a violência, por outro, o contexto da época exigia possuir a
habilidade para se defender de atacantes. Como os mosteiros possuíam uma grande
quantidade de terra e, em geral, se localizavam em regiões remotas, eles eram alvos perfeitos para saqueadores. Sendo assim, até mesmo os monges não estavam livres de disputas.  Eles estavam prontos para se defender.

Encobrindo uma verdade inconveniente

Contudo o fato é que as ações militares (de autodefesa ou não) dos monges nunca foram registradas pelo cânone budista. O historiador, Meir Shahar, interpreta isso como uma prova de que os abades queriam encobrir a contradição de alguns de seus atos. Shahar ainda
chega a sugerir que a lenda de Jinnaluo (uma divindade, patrono do Templo Shaolin) foi criada para justificar a prática marcial dos monges.

Jinnaluo é uma divindade que usa um bastão. Essa arma não possui uma lâmina, ou seja, não pode cortar. Porém, a verdade é que o bastão é uma arma muito poderosa. Além de versátil ela pode causar sérios danos no corpo, mesmo usando proteções. Apesar dos monges Shaolin
utilizarem vários tipos de armas, como lanças e facões, a técnica de bastão do
mosteiro foi a mais citada por vários manuais militares do séc. XVI.

Dito tudo isso, é importante lembrar que qualquer princípio ético, filosófico ou religioso pode facilmente se perder na vasta complexidade do mundo.

No Japão, na Segunda Guerra Mundial, houve budistas que apoiaram a guerra e usaram de recursos argumentativos baseados na filosofia de sua fé para defender diversas
atrocidades. De maneira similar, vimos o cristianismo ser usado como justificativa para males terríveis, como as Cruzadas e a Inquisição. Essa contradição entre a religião e a violência é
muito antiga e perdura até hoje.

Como os monges Shaolin eram vistos pela sociedade?

Diante de um contexto tão complexo, os monges Shaolin foram exaltados por uns e desprezados por outros. Pela fama do Templo, os monges eram visto ora como heróis ou santos, ora como bandidos ou baderneiros e, às vezes, como charlatões.

Como vimos, alguns generais validavam as técnicas do Kung Fu Shaolin enquanto outros fizeram duras críticas.

A presença dos monges na cultura chinesa

Na literatura da China encontramos diversas referências que exaltam os monges, principalmente os de Shaolin. Por mais que fosse comum a participação de milícias monásticas
na defesa das regiões dos mosteiros, os feitos do Kung Fu Shaolin roubaram o olhar do
público.

Cheng Zongyou comenta no seu livro Exposição sobre o Método Original de Bastão Shaolin, 1610, que os únicos monges que mereciam o título de guerreiros eram os Shaolin. Isso mostra o quanto os feitos dos monges do templo foram significativos para a fama em relação aos outros mosteiros.

Em 1553, temos o maior contingente de tropas monásticas de que se tem noticia. Na batalha de Wengjiagang, 120 monges enfrentaram e perseguiram mais de 100 piratas sofrendo apenas quatro baixas.

Para além do Templo Shaolin

Feitos assim ofuscaram a participação de mosteiros como o dos Montes Wutai e Emei. Esses,
ficaram conhecidos pela defesa da nação contra as invasões de tribos do norte em 1004 d.C. Esse feito teve mais impacto geopolítico, pois era uma questão territorial importante. Porém, isso não foi o suficiente para chamar a atenção do povo, artistas e historiadores ao longo dos séculos.

Mais exemplos que citam o templo de Wutai:

  • O historiador renomado, Ma Mingda, já reconhecia os feitos dos monges do Monte Wutai (próximo da província de Shanxi);
  • O livro Os Bandidos do Pântano imortalizou os feitos do monge Lu Da (ou Lu Zhishen),
    conhecido como “monge tatuado”. Ele era um especialista com o bastão de metal e
    foi expulso do mosteiro Wutai por mau comportamento;
  • Romance dos generais da família Yang (Yangjia Jiang) conta sobre um general que se ordenou como monge de Wutai e comandou uma tropa monástica contra a tribo nômade do norte liao khitan;
  • Série das Três Dinastias (San chão bei mong hui pian) – atacados pelos invasores jurchen (fundadores da futura dinastia Jin, 1115-1234) os monges de Wutai se juntaram aos Song para defender a nação. Entre 1125 e 1126 a cidade de Tai Yuan foi sitiada por nove meses até caírem aos invasores. Dois monges foram reconhecidos pela defesa: Lu Shan Nuo e Du Tai Shi;
  • Ma Mingda também se referiu a Zhen Bao, um monge de Wutai, que liderou tropas contra os Jin. Porém, ele e suas tropas não conseguiram vencer a superioridade numérica dos adversários;
  • Os Song tinham um departamento de oficiais eclesiásticos (seng zheng). Os postos
    mais elevados eram nomeados no monte Wutai. O historiador dos Song do Sul, Zhao Yan Heng, conta que o mosteiro do monte Da Hing, de Hebei, foi fundado por um monge de Wutai.

Os monges não são citados somente em livros técnicos e manuais militares. Eles foram
importantes na literatura ao permearem o imaginário do povo chinês.

Mais contemporaneamente, vemos os monges serem representados como paladinos da
justiça que contam com sua fé e habilidades para lidar com conflitos sem a violência (apesar de não hesitarem de usá-la quando necessária).

No ocidente, as histórias de monges chineses praticantes de Kung Fu, são quase que
automaticamente associadas ao Templo Shaolin. Porém, o fato é que a pratica marcial era algum relativamente comum (apesar de pouco generalizada) nos mosteiros.

O estilo Shaolin do Norte ou Bei Shaolinquan

A postura do Herói é uma das mais emblemáticas do Shaolin do Norte

O templo se tornou um local de intercâmbio de práticas marciais ao longo dos séculos. Estilos de Kung Fu praticados ao norte do rio Yangtsé foram sendo integrados aos ensinamentos marciais de alguns monges no templo. Esses estilos eram o Tan Tui, Cha Quan, Hua Quan, Pao Quan e Hong Quan.

Com o passar do tempo os vários sistemas que passaram pelo templo foram organizados em dez formas (rotinas ou taolus). Essas formas compõe todo o arcabouço técnico do Shaolin do Norte.

Porém, na primeira metade do século XVIII, o estilo e o Tempo quase foram destruídos pelos Qing. Supostamente, somente o monge Jue Yuan conseguiu salvar o Shaolin do Norte ao fugir para o sul. O mestre mais famoso desse estilo é Gu Ruzhang, nascido em 1894, na província de Kiangsi. A organização atual do Shaolin do Norte é atribuída a ele.

Esse estilo é reconhecido por ser muito bonito e acrobático. Com suas posturas baixas e transições fluidas ele dá uma ampla gama de técnicas ao praticante. O treino nesse estilo é realizado tanto com as mãos vazias quanto com armas tradicionais do Kung Fu.

E você já praticou algum estilo de Kung Fu ligado ao Templo Shaolin? Inscreva-se na nossa Newsletter para receber novidades sobre o Kung Fu e Tai Chi Chuan!

Capa do Livro A Arte da Guerra de Sun Tzu

A Arte da Guerra de Sun Tzu

Um dos maiores tratados sobre estratégia militar do mundo antigo. Hoje é tido como referência até mesmo entre empresários que criam estratégias para expandir seus negócios.

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Um livro contendo os frutos dos estudos de Peter Harvey, professor emérito de Estudos Budistas na Universidade de Sunderland (Inglaterra).

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2 Comments

  1. Welington Ferreira Mattos junho 17, 2020 at 18:27

    Olá, shifu!
    Eu gostaria de saber quem foi o teu shifu e qual a tua linhagem de Tang Lang Quan.
    Acho esse curso online uma boa idéia.

    Reply
    1. Jonas Bravo junho 18, 2020 at 15:24

      Olá, Welington! Eu iniciei meus treinos de Kung Fu na TSKF.

      Minha linhagem, do meu primeiro professor direto até seus mestres, é: Danillo Cocenzo > Gabriel Amorim > Dirceu Amaral > Li Wing Kay

      Que bom que gostou da ideia do curso! Aproveite o período gratuito para experimentar um pouco e ver o que acha. Qualquer dúvida estou à disposição!

      Reply

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